Será que alguém pediu ao Raphael Gallo para dançar no TikTok?
O dia em que o Gallo quase desistiu da escrita | uma crónica?
O Jornal de Notícias, em maio de 2023, publicou uma notícia sobre o Prémio Saramago e o galardoado Rafael Gallo, escritor brasileiro.
O jornal, para chocar pessoas fora do mundo editorial português, imprimiu um excerto em letras gordas:
"estive a um pequeno passo de desistir da escrita".
A ideia de desistir da escrita surpreende toda a gente menos os escritores, que pensam em desistir da escrita todos os santos dias antes de terem outra ideia para um outro livro e lá vencerem a resistência e sentarem-se a escrever.
Mas como assim Raphael Gallo pensou em desistir da escrita?
Em 2022, no ano em que venceu o grande galardão português, já tinha ganho outros dois prémios literários - Prêmio SESC de Literatura em 2012, e em 2015 o Prêmio São Paulo de Literatura em categoria de “estreante abaixo dos 40 anos” – mas como Gallo terá entendido rápido, com dois livros e dois prémios em 10 anos, não se coloca comida na mesa com dois livros.
Seria por isso que decidira desistir da escrita e nunca publicar o seu Dor Fantasma?
Numa entrevista sobre o Prémio Saramago, perguntaram a Gallo:
«Qual a sensação de colecionar tantas premiações? Traz alguma responsabilidade a mais para sua carreira?
Na verdade, para mim traz alegria e alívio.
Infelizmente, escritores e escritoras têm que batalhar demais, aqui em nosso país, para manterem seu trabalho (e, em especial, seu ânimo) com a escrita. Não deveria ser assim, deveria haver um caminho mais sólido, em que os prêmios viessem a acrescentar, mas não se tornassem tão definidores do reconhecimento que se recebe ou se deixa de receber. Esses prêmios mudaram minha vida, e sou muito grato por cada um deles, mas também gostaria que tivéssemos – eu e meus colegas – um ambiente de escrita e leitura mais salutar. Menos adicto em efemérides.»
O que Raphael Gallo sabe – e mais ninguém percebeu em 2022 – é que um escritor cujo manuscrito venceria o Prémio Saramago, é tão mal tratado pela indústria… e tal mal tratado por todas as editoras a quem bateu à porta que queria desistir.
Pela falta de feedback, pelas oportunidades para estreantes que só dão a autores já famosos, ao mundo complexo da edição cheia de ratoeiras e abusos legais que prejudicam os autores… o futuro vencedor do maior galardão da língua portuguesa pensou em desistir da escrita.
Queria desistir de um livro que venceria o maior prémio literário da lingua portuguesa.
Quando envias o teu livro para tantas editoras e ninguém te diz nada – porque sim, há editoras que ignoram um laureado pelo Prémio Saramago, vai se lá saber porquê, - então pensas que o teu livro não vale nada e deixas que ele caia na gaveta e por lá fique, esperando ventos mais favoráveis.
O blog da Fnac publicou uma entrevista com o escritor, onde ele conta que quase não atendeu ao telefonema da presidente do juri do prémio Saramago para lhe contar que ganhou, pensando que era telemarketing.
Eu entendo esta dor – mesmo sendo um “feto” nesta vida da escrita. Vou explicar-me.
Maior parte da Geração Z, vendo o telemóvel a tocar e sendo um número desconhecido, nunca atenderia o telemóvel (sim, contaram-me, eu não estou louca). Na pequena seleção de pessoas inquiridas, nota-se uma diferença geracional enorme: enquanto as gerações mais velhas entendem que o telemóvel é uma tecnologia fantástica e que, se te estão a ligar, é porque têm alguma coisa a dizer, a Geração Z olha para uma chamada telefónica de um desconhecido como comida estragada. Nunca. Na. Vida. Só se eu estiver a morrer de fome.
Nem fazem chamadas para desconhecidos, também.
Eu não entendo esta divisão geracional.
Se eu preciso de entrar em contacto com alguém que não responde a emails, eu pego no telefone e ligo para o número disponível. Este ato simples de comunicação tem uma reação visceral por parte das minhas amigas.
Para quem também não atende a números desconhecidos, com o mesmo medo de um telefonista com o salário mínimo a tentar convencer-te a mudar de tarifário, eu entendo.
Agora imagina:
Passaste um mês, ou metade da tua vida adulta, a pesquisar editoras que publicam novos autores portugueses, pesquisaste o catálogo, pesquisaste artigos sobre a editora, perseguiste os seus freelancers no linked in, reescreveste o email e outra vez.
E enviaste o email a apresentar o teu livro para possível publicação.
E esperas.
Uns dias depois recebes uma chamada.
Nenhum autor nessa situação NÃO atende o telefone. É o teu sonho. O editor leu o inicio do teu livro que está tão entusiasmado que quer falar contigo imediatamente e ligou-te. Quer publicar o teu livro. Duas mil cópias na primeira tiragem, o teu livro em todas as livrarias. Lançamento no NorteShopping.
Aí, ao imaginar o editor do outro lado do telefone, começa a grande batalha interior. Será o editor ou um tipo de telemarketing?
E se for o editor? E se for o tipo de telemarketing?
Para a Geração Z, esta pergunta não se faz. NÃO SE ATENDE O TELEMÓVEL!
E para ti? O que farias?
O Rapahel escolheu não atender o telemóvel.
Mas conta que, ao pesquisar o número, percebeu que a chamada vinha de Portugal, e ao relembrar-se que tinha ganho o prémio, devolveu a chamada.
"Ninguém lho tira" recorda-se o escritor de ouvir do outro lado do telefone.
Chegaram os ventos favoráveis que Raphael Gallo esperava.
Além do prémio em dinheiro (que consegue comprar muitas latas de atum, mesmo com a inflação), como galardoado uma vez, nunca mais será rejeitado em mais lado nenhum.
Muitos editores devem ter rejeitado publicar o seu Dor Fantasma, mas agora, todos esses editores reconhecem que o livro é um marco na ficção literária e que deve ter destaque em todas as livrarias, tal como Gallo deve ter sonhado.
Agora tudo o que Gallo cuspir para um documento word é para sempre literatura.
Quando os editores ou livreiros ou promotores da cultura olham sobre o mar de emails por abrir e no preview text do email aparace Raphael Gallo, a resposta é sim. Seja qual for o pedido.
Eu nunca li nenhum livro do autor, para ser clara. Nem o irei fazer num futuro próximo. O ponto que quero fazer não tem nada a haver com o que está no miolo dos livros do Gallo. Se sabe escrever ou não (convinha saber escrever para ganhar o maior prémio para livros inéditos portugueses).
Um dia antes da chamada telefónica, quando a líder do júri do prémio Saramago contou a Gallo que ele era um escritor a sério, ninguém queria saber do autor.
No dia seguinte, abriram-se todas as portas, como por magia.
Antes de receber o prémio, Gallo já era um grande escritor.
Por que precisamos de uma varinha mágica para decidir quem é que é bom escritor? E porque será necessário ganhar o maior prémio da nação para que sejamos tratados como pessoas e que alguém responda à porra dos emails?
E não digam que os editores trabalham muito! Eu sei que trabalham muito. Eu sou quem mais respeita o trabalho dos editores portugueses.
Mas têm tempo para tertúlias e dar cursos e para marcar reuniões ridículas, têm tempo para dizer que leram duas páginas do manuscrito e que gostaram, mas que não irão avançar com o projeto porque a autora por acaso não tem grandes seguidores no tiktok e por isso o livro não venderá.
Será que alguém pediu ao Raphael Gallo para dançar no tiktok?
Depois de ganhar o Prémio Saramago, será que te pedem para apagar a tua conta nas redes sociais? Para seres um escritor a sério?