Platão. Shakespeare.
#1 | Um conto inspirado em “March Tale” de Neil Gaiman
Platão. Shakespeare. Os vendedores bradavam aqueles nomes no mercado quando ela nem tinha tamanho para ver os livros expostos nas bancas dos mercadores.
Na aldeia não havia ninguém chamado assim.
Eram escritores, soube mais tarde. Pessoas que inventavam histórias. Ela era excelente nessa disciplina – a mãe dizia-lhe que não fazia outra coisa. Aquela ideia fascinou-a, que alguém escrevesse uma coisa numa página, e pudesse ser distribuído pelo mundo – e que cada pessoa poderia ter uma cópia só sua, em casa mesinha de cabeceira, para ler antes de assoprar a vela e ir dormir. Ela também queria aquele mundo. Escrever alguma coisa e que fosse distribuído por todos, e viver das suas histórias.
— Vou ser escritora.
Era a coisa mais perto da liberdade que a miúda tinha visto na sua curta vida.
Depois de levar um estalo e quase cair da cadeira, enquanto tomava o pequeno-almoço, o pai respondeu-lhe.
— Não, não vais. Aqui ninguém é escritor.
Passado pouco tempo, tinha outra ideia em mente.
— Vou imprimir livros! Vou ter uma livraria!
Depois de outro estalo, o pai respondeu:
— Os impressores são chicoteados na praça. A minha filha vai ser costureira. Vais ser feliz aqui.
March duvidava disso. Ou melhor, tinha a certeza que ali nunca seria feliz.
Passado pouco tempo, tinha outra ideia em mente. Veio-lhe num dia de muito calor, quando a mãe – algo rotineiro – se agarraram à pequena balaustrada do alpendre do casebre que tinham.
— E o teu homem? — Perguntou a mãe à vizinha que passava cabisbaixo rua abaixo.
— Na baixa. Ainda bem que enforcaram os piratas para que ele pudesse voltar a casa.
Não era preciso muito explicação, o navio da marinha tinha chegado ao porto. Essa conclusão não era difícil, vendo metade das mulheres da aldeia a caminhar rua abaixo.
Quando foram todos ao cais, ver os homens da aldeia descer do navio da marinha inglesa, March apaixonou-se. Pelas ondas do mar que raramente via, pelas palavras novas que os marinheiros gritavam uns para os outros, pelas vestes do capitão que dançavam com o vento enquanto ele assistia aos pobres de camisas sem colarinho, calções pelo joelho e coletes velhos que esfiapavam que desciam a prancha, são e salvos de sorriso aberto.
Decidiu finalmente o que ia ser quando fosse grande.
Mas de certeza que a marinha inglesa nunca ia deixar uma mulher entrar no navio, mesmo vestida com a roupa do pai. Ela não conhecia nenhuma mulher que tivesse voltado de uma viagem marítima. Os pais também não conheciam nenhuma mulher que algum dia tivesse sido empregue pela coroa para servir o seu país.
Ainda bem, pensou March, debaixo do cobertor naquela noite. Também não ia querer ser mandada por aquele tipo de cara feia e chapéu grande, que olhava os pobres ao longe.
Ia embarcar no navio que a deixasse entrar. Mal ela sabia que seria aquele que estiava bandeira negra.
Quando voltou as costas à aldeia inglesa de Clitheroe, nem sabia soletrar o nome do poeta que ouvira tanto falar. Shakespeare. Poucas pessoas sabiam escrever, e as poucas que sabiam nunca cruzaram as ruas por onde ela deambulava, de pés nus e fendidos enterrados na lama da primavera.
Pois claro, então aprendeu a ler e a escrever longe dali, num navio que a empregara.
A primeira palavra que aprendera, e escrevera sozinha, foi insubordinação.
In-su-dor-di-na-ção. Horrível se tentasse ser a costureira respeitável com que os pais sonharam. Perfeito para ser pirata, o que lhe soube bem. Para as primeiras aventuras era bom não seguir as regras. Garreou e saqueou e apaixonou-se.
Mas por mais que a pequena caravela navegasse, March nunca encontrara a liberdade que procurava em criança, quando se debruçava na balaustrada com a mãe e sonhava com o futuro. March rapidamente aprendeu que li-ber-da-de vinha com o preço de carregar uma navalha presa ao cinto para todo o lado, até quando se agachava no penico. E que carregar uma navalha para todo o lado, ou assaltar navios ingleses por alguns barris de água potável vinha com um preço alto à sua cabeça.
E se se apaixonasse? O preço era ainda mais alto.
Quando a barriga inchou, deixou a navalha para trás e suplicou e chorou aos oficiais da marinha, ao atacar a sua caravela, que tinha sido raptada e que se chamava March e que era costureira de Clitheroe. E era inglesa de gema. Que rezava à religião do rei e que se vestia de acordo com as leis do rei.
E com sorte ou sem sorte, teve passagem no navio da marinha. E comida fresca. E escolta até à balaustrada onde a mãe ainda estava. Agora sentada, de cabelo cinzento, a costurar enquanto a luz do dia durava.
Antes de entrar em casa, um polícia da vila mandou-a parar.
Era parecia com uma pirata famosa. March Ratborne. A mulher que governava os mares. O polícia contou-se que a Inglaterra tinha uma forca com o seu nome na margem do rio Thames – como todos os piratas que roubaram da coroa.
March levantou os ombros e mostrou a barriga. Como podia aquela barriga aguentar as ondas do oceano atlântico? Assegurou o polícia que nunca tinha saído de casa, e que era feliz ali.
Empurrou a porta. A madeira continuava fendida. O chão tinha as mesmas migalhas do pão à volta do banco coxo em que o pai se sentava e merendava. Sentou-se na cadeira que deixara para trás. A mãe voltou para dentro e fechou a porta atrás de si.
Se March saísse de casa muitas vezes, alguém a ia conhecer dos pósteres de procurada que de certeza tinham espalhado pela vila.
Mandou a mãe comprar papel. Ia escrever as aventuras que enfrentara. Contar o que roubou. E depois comprou um exemplar de Shakespeare. Talvez fosse escritora, afinal, como o grande mestre.
#1 Ray Bradbury Challenge
tá feito.
Tem erros? Tem.
Podia ser melhor editado? Sim. Mas está aqui.