Quando Josh morreu, apareceu perante o Diabo, e outros sete indivíduos que aplaudiam na direção dele.
— Finalmente, um oitavo pecado mortal! — Gritou o Diabo.
Riam-se alto, o Diabo especialmente – o que o deixava com dores nos ouvidos. A sala ecoava aquele som maldoso. Depois da morte, quase como piada, o corpo era ainda mais frágil. Levantou as mãos aos ouvidos, para não ficar surdo.
Estavam numa caverna de pedra vulcânica, pintada a carvão. Havia luz pela saída clara ao fundo. Uma mesa-redonda feita daquela pedra ainda mostrava raios de lava viscosa, contrastando com as vestes de juiz que o Diabo usava. Com a brisa que corria ali dentro, o elaborado candeeiro de ossos que descendia do teto abanava, e as falanges que o compunham tilintavam umas contra as outras, que criava uma atmosfera aterrorizadora.
A toga do Diabo tinha restos de vidro, que a fazia brilhar, enquanto os outros sete à sua beira estavam com a roupa que mostrava a sua personalidade fraudulenta.
O primeiro da mesa usava um blazer escuro e velho, os primeiros quatro botões abertos de uma camisa de estilo duvidoso, e um relógio dourado que combinava com o seu anel. Tinha um sorriso de quem vendia carros, ou coletava impostos.
O seguinte tinha vestes de padre e manchas de chocolate nos punhos.
Ao lado, uma velha que espreitava por cima do ombro de toda a gente, invejosa. A seguir, um homem com uma corrente de ouro à volta do pescoço e um martelo de juiz na mão, que tremia, não sabia bem se de Parkinson se de culpa. Um miúdo a seguir envergava a t-shirt da universidade, mas desistira do diploma para investir na cerveja a tempo inteiro. Ao lado dele, uma adolescente a preencher as sobrancelhas fracas com sombra dos olhos, e a importunar o seu espaço, uma freira sem o véu – o cabelo repleto de brilhantes decorativos feitos com plástico barato, que espalhavam os poucos raios de luz que entravam na gruta. Era a única coisa que brilhava naquele sítio. O cabelo dela, e as vestes negras do Diabo.
O Diabo clareou a voz, focando em si a atenção dele.
Era impossível não ficar a estudar os cornos que lhe cresciam da fronte. Eram encarnados, de osso mais duro que do que aquele que tínhamos.
Dois miúdos esbranquiçados carregavam uma cadeira para a ponta da mesa. Josh seria vizinho do homem que vendia carros. A ansiedade começava a amontoar-se no seu peito. O que estava a acontecer? Ia ele também julgar as pessoas?
— Agora tens de levar outros a pecar. — A voz do Diabo, de veludo, não assustava, como diziam as escrituras. O candeeiro tilintava com a brisa insistente.
— Como?
O Diabo riu-se, sem lhe explicar mais nada.
O corpo desvaneceu.
Josh acordou novamente, com o a cabeça a doer, na estação de comboio perto de casa, que frequentava para ir trabalhar… antes de ter morrido. Sentia todos os membros novamente, e o peso da roupa no seu corpo, o picar da etiqueta no pescoço. Apalpava a sua roupa como se lhe fosse nova. Seria uma alucinação?
Será que as pessoas o viam?
Parecia que sim, ou estariam a bater contra ele.
Podia simplesmente ir para casa? Agora? Fechou os olhos. Relembrava-se da sua casa de infância, e o que dava para lá voltar. Ao fechar os olhos, conseguia ver os retratos da família presos na parede.
As emoções brotavam ao flor da pele todas ao mesmo tempo.
A sua mente corria para a pilha de fotos de família – recordações que se cristalizavam em sépia. Havia-as às centenas, em molduras e em álbuns.
Quando criança, ainda se sentava à frente da gaveta, a brincar com os momentos que fotografaram – conversas ao sol com um prato delicioso à frente, os arranjos para o casamento, as primeiras férias dos pais escondidos numa barraca desfeita na praia. Vinha dali a sua vontade de viver para sempre, de ser lembrado. Mas o que irrompia dos nossos genes caprichosos era quase sempre a causa da nossa grande desgraça.
Tinha lutado para ser lembrado. Imortal. E tinha acabado ali…
O que não dava para voltar àquela sala, com as mãos cheias de fotografias para esfolhear…
Podia tentar fugir.
Olhou para o portão da estação, e os carros que se apressavam a sair dali. Ia fugir dali! Desceu as escadas, correu pela plataforma. Chegou aos portões escancarados e atravessou-os. Primeiro, deixou de sentir o peso dos pés, e logo das mãos. Olhou por si abaixo, e já não via nada. O corpo tinha desvanecido novamente. As pessoas já não o conseguiam distinguir do resto da paisagem. Estava morto.
Deu um grito feio.
Mordeu o lábio, como se visse a cara do Diabo à sua frente novamente, e voltou para dentro da estação de comboios.
O peso do seu corpo caiu sobre ele novamente, de uma vez só, deixando-o tonto. Sentou-se no banco perto da entrada, para descansar. A fúria ainda lhe pesava…
A única réstia de vida que lhe restava… era à mesa do Diabo.
Ou aceitava um lugar naquela mesa, ou desaparecia de vez.
Se levasse os outros a pecar, ia viver para sempre. O seu objetivo ia-lhe ser garantido pelo Diabo. Só precisava de fazer outra pessoa pecar.
Levar os outros a pecar. Mas como ia fazer aquilo? Levar os outros a pecar?! Não era suposto as pessoas pecassem sozinhas? Escondidos? De luz apagada?
Enterrou a sua cara nas palmas das mãos.
Levantou-se de pulso fechado.
Se não conseguisse, seria a sua alma esquecida? A vida em vão?
Josh respirou fundo e deu um passo em frente, ainda tonto.
Pecar. Pecar. Pecar.
Quem ia querer a imortalidade ali? Quem ia querer viver para sempre? E logo ouviu um trombone vindo do corredor por baixo da plataforma. As notas iam alterando-se devagar, numa melodia pesada, mas que acalmava. Dava-lhe vida a ele também: a tez esbranquiçada da sua cara passou a amarelada, como dos vivos.
Desceu as escadas. Chegou à beira do músico. Ficou de pé a ouvi-lo tocar. O músico demorou a prestar-lhe atenção. Era um jovem pequeno, negro, de cara simpática. Por momentos, Josh, com o seu corpo a explodir de medo, pensou na cara do rapaz a navegar nas águas que corriam debaixo da gruta do Diabo, por ter pecado.
Pensou em ficar calado. Em deixar o rapaz seguir a sua vida.
Mas se Josh desistisse, seria esquecido. Morria.
O músico olhava-o de soslaio, a perguntar-se porque ainda não tinha a carteira na mão. Atrás de Josh havia pessoas a assistir ao espetáculo.
— Como se chama? — Josh perguntou mais alto do que faria.
O músico fez cara feia. Pouco depois, quando Josh continuou a falar, o músico parou e colocou o trombone no chão.
— Quer viver para sempre? — Josh disparou.
O músico fez uma cara ainda mais feia que antes.
— Para quê?
Aquela apanhou-o despercebido.
— Para partilhar a sua música!
— O que achas que estou a fazer… assim que saíres da minha frente?
Josh deu um passo atrás, incrédulo, como se estivesse no meio de um tornado, de cabelos remexidos.
O resto da estação ficou ainda mais ocupada com a chegada de dois comboios, que agora arrancavam num guincho agudo. Será que a morte acentuava a audição? As pessoas desciam escadas abaixo, à procura da saída da estação.
Os cheiros diferentes combinavam numa onda de confusão e desconforto, queria vomitar.
Deu um passo atrás. Outro. Olhou à volta.
Depois da manada passar, voltou para a plataforma. O sol começava a pintar-lhe a roupa quando subia os degraus devagar, sem a pressa dos outros para apanhar o comboio a tempo. Ele não tinha nenhum comboio para apanhar, depressivamente. Só sairia dali quando alguém pecasse.
Tinha de fazer alguém pecar, repetia para si, à espera de uma ideia que surgisse. A ansiedade acumulava-se no seu peito, como se deixasse de respirar por segundos de cada vez.
Sentou-se no banco vazio. A sua chance estava completamente perdida.
E de repente, apareceu-lhe uma visão.
Parecia uma miragem, como se estivesse perdido no deserto.
Se olhasse para um lado, assistia a uma adolescente de meias de renda, a pintar as unhas de uma cor horrível, de headphones altos a ouvir alguma coisa ridícula. Do outro lado, a aparecer nas escadas, um confronto a nascer.
Primeiro, o cabelo cortado sem jeito. A camisa apertada até ao pescoço. A roupa dele preta.
— Padre! — Exclamou Josh quando se juntou a ele. — Preciso de si.
Ele parou e escutou. Os padres não diziam que não a um senhor em necessidade, a responder às preces de um pobre coitado.
— Há tristezas que eu não tolero. — Josh respirou fundo. — Gostava de ter um lastro, senhor? Gostava de viver para sempre? Aquilo é uma tristeza.
Apontou para a miúda no fundo da plataforma, que já tinha mudado de mão a pintar.
O padre caminhou com enfase para a rapariga na ponta da plataforma. Estava pronto para lhe dar o maior sermão da sua vida, se calhar, ainda colocar a integridade física da menina em perigo.
Antes de chegar, parou. O corpo do padre tremeu. Tombou para o lado.
Josh sorriu. Sentiu o corpo a perder o peso, e a sua própria imagem a desvanecer.
FIM.
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