As almas do inferno perderam a sua piada. A súplica aborrece-me.
E aí chegaste tu. Não te criei. Longe de mim – as pessoas da Terra dão-me muito crédito nesse departamento. Ainda bem que chegaste antes que eu perdesse a fé na humanidade. Encontramo-nos enquanto rezavas com a avó. Rezavas com a velha ao lado, de joelhos em cima de feijões. De castigo divino não tinha nada porque eu gosto de ti.
Na terra, dizem que eu sou eterno, e omnipotente. Eu não diria tanto, mas corrigir alguém que te elogia é falta de respeito… vim de carne humana, igual à tua, cheia de chagas e mentiras que me corriam na mente: «os outros estão a rir-se de ti» ou «devias ir ao ginásio». No céu a mente não é perfurada por tais pensamentos.
Por isso, ou talvez por causa disso, a eternidade tende a ser aborrecida. Mas tu chegaste.
Não te queria dizer isto, mas o pessoal aqui de casa julga-te quando me veem sentado à frente da televisão, mas eu adoro assistir à tua correria para esconder a porcaria que andas a fazer.
Hoje Madalena sentou-se à minha beira.
— Primeiro, roubava a reforma da avó. Também era divertido de ver, mas isto é bem melhor, um pouco contra o pudor. Como Pedro tinha dito, herege. Mas eu gosto. — Conto a Madalena.
Por mais que odeies a aldeia, a coscuvilhice e o tricô, acabaste por os aprazer. Linda menina.
— Há sogras descontentes com os maridos das filhas. — Explico a Madalena, sentada ao seu lado antes da cerimónia começar. — E ela tornou o desprezo caro delas num desporto muito bem pago. Agora chega as pipocas.
Não sei como começaste este jogo, mas é genial. De alguém profundamente iluminado.
— Pouco antes da cerimónia, alguém bate ao portão da avó. — Começo a explicar as aventuras do meu reality show favorito. — Ela acode logo. Sentam-se entre chá e bolachas, e os santos de porcelana da avó escutam as preces desesperadas: “Ele é de tão más famílias. E a minha Patrícia, coitada, caiu na lábia…não deviam casar.”. E ela responde: “eu posso ajudar”, como um médico no seu consultório.
— E depois?
— Depois… as velhas abrem os cordões da sua pequena fortuna. Se eu fosse a ela aumentava os preços. No dia da cerimónia, quando a noiva entra e o coro se cala e já estão todos sentados, ela entra na igreja a correr, de roupa rasgada e cabelo previamente desgrenhado para parecer que veio da labuta. Grita algumas coisas que compromete a reputação do rapaz. É muito divertido.
Parabéns! Que negócio!
E a igreja toda acredita que o rapaz, que tem uma patrícia, pescaria e brincaria com uma adolescente do campo, com muitos afazeres, pouco peito e roupa desbotada.
Mas tens um trabalho para fazer e és ótima atriz. E a sala acredita-se. O padre fica sem palavras, e a Patrícia foge, arruinaste-lhe a reputação também – a copulação já começou esperando que ninguém soubesse contar muito bem… Daqui a uns meses terá de ir viver com uns primos para Monção e depois aparece com uma criança a que a Patrícia se apegou e agora é sua.
Na igreja, o noivo congela, sem recordar o que fez de tão mal.
— Alguns noivos franjam a testa, reconhecendo as frases que ela diz. E a mãe da noiva sorri sempre, vais ver.
— E agora? — Perguntou Madalena ao ver-te no meio da igreja, com os convidados com as mãos na cara, a tapar o choque.
— Agora vai para casa.
E como se eu mandasse alguma coisa, tu limpas as lágrimas de fronte para o noivo, perdes a cara de vítima, ganhas aquele orgulho de um trabalho bem-feito o e sais da igreja de peito feito.
A labuta acabou, estás estafada e contente.
— Margarida? — Diz um dos convidados a fumar fora da igreja. Um tipo mais velho, de fato bem prensado e gravata fina.
As tuas pernas tremem. O peito fica quente, de repente. Conhecem-se bem, de outras andanças.
— Quem é este? — Berrou Madalena ao meu lado. O saltinho que deu deitou uma dúzia de pipocas ao chão.
— Não sei. — respondo.
— O que estás a fazer aqui? — O estranho pergunta-te.
— Tu fugiste. — Tu comentas, de coração despedaçado.
— Não, tu fugiste! — Ele diz num tom mais alto. — Tínhamos um acordo e tu…
E de repente, beijam-se, assim, sem mais nem menos.
— Credo que coisa… — Disse Madalena, mas contente claramente com o que acontecia.
Depois, tudo aconteceu rápido. Ela puxou-lhe a mão, empurrando-o de volta para dentro da igreja. Marcharam os dois pela passadeira de flores feita para os primeiros noivos. A igreja já tinha perdido metade dos convidados, outros permaneciam ali, sem saber o que fazer.
— Case-nos. Agora. — Disseste para o padre.
O padre, com medo de ti – como devia –, fez o que pediste.
Dez minutos depois, casada, de alianças no dedo, saíram da igreja a correr, roubaram um carro e aceleraram estrada fora.
Eu caí numa depressão tremenda ao ver um casal, casado no meu nome, feliz. Principalmente fazendo essas coisas obscenas com que vocês os dois preenchem os vossos dias. E tu ris, mais alto do que antes, como se me ouvisses a sofrer.