Isto é de loucos.
A primeira vez que recebi dinheiro com a escrita foi na semana em que celebrei 17 anos.
Venci o terceiro prémio de um concurso distrital que rendeu-me 150 euros.
150 euros.
O que para um concurso literário… é pouco. Mas para uma miúda de 17 anos, é uma cena!
Escrevi um conto de 4 páginas - não podia ser maior - sobre o 25 de abril - o tema pedido. E gostei de escrever sobre aquele tema.
Na coletânea que publiquei, 3 contos descendem desse primeiro conto de 4 páginas.
Mafalda
As súplicas não são ouvidas, regras da casa
Um ser de segunda
Um ser de segunda foi escrito para o concurso de “In/sanidade” da Divergência.
Já tinha participado no concurso prévio da divergência.
Depois desse, participou noutros.
Agora está aqui. Para vocês.
Ficam aqui as primeiras páginas:
Cinco de janeiro de 1934, Lisboa
Ao senhor presidente do concelho, Professor Doutor Oliveira Salazar,
Excelentíssimo, em seguimento da pasta da moralidade que me confiou, e agradeço-lhe, preciso de apontar a questão principal que chega à minha secretária. A PVDE está a sangrar homens para as pequenas aldeias, onde acusam os padres de tocar nas meninas. É uma epidemia, senhor.
Mal lá chegam os agentes, os padres negam o acontecimento. Só a viagem são dois dias!
Não sabia se o Presidente do Concelho ia ler aquilo, mas tinha de tentar. A mentira era um problema grave, que precisava de ser resolvido antes que se desperdiçassem mais recursos.
Era aquele mesmo o maior medo de Moisés – ser acusado daqueles crimes. Mentiras. Deitarem a sua honra ao lixo. Estragar todo o trabalho que fazia.
Não discutimos Deus, e a virtude. Não discutimos a Pátria, e a sua história. Não discutimos a família, valioso bem do Estado. Mas Senhor, o problema da mortal nacional está dentro do núcleo da família – na mulher.
O problema resolver-se-á rápido – com bons exemplos! Se Deus não permitiu que a sua autonomia as guiasse, então que sejam os homens a fazê-lo. Mas como o senhor sabe, depende do Estado tomar todas as providências no sentido de evitar a corrupção dos bons costumes. E é nesse sentido que lhe envio esta carta.
A melhor mulher é aquela que se apresenta à sociedade resguardada. E assim, incentiva as outras a fazer o mesmo. Primeiro, casta, tapada com um véu herdado, a subir ao altar. Depois, com um avental à sua frente e assim que Deus quiser, tapada por uma leve folha de madeira, enquanto os familiares se despedem.
Mas é preciso agir para criar esses exemplos.
O meu gabinete recebera uma carta de um Pároco de Vinhais, que lhe envio em anexo, explica a mísera educação das mulheres hoje. Uma rapariga da paróquia disse que foi atacada pelo padre, quando este insiste que nada aconteceu. O padre acrescenta que ela se casou faz pouco tempo. Fez aquela birra para fugir às suas responsabilidades matrimoniais.
Não podemos tolerar que o país perca tempo com birras de crianças, Senhor, e os agentes da PVDE andem de vila em vila a arruinar a reputação de um respeitável homem de Deus.
Assim, senhor, peço que o Conselho analise a proposta de lei que envio anexada.
A última palavra ficou mal escrita. Pegou na folha e arrancou-a com força. Escreveu o resto da mensagem a lápis para não se esquecer. Os maiores modelos de bons portugueses somos nós mesmos, senhor presidente.
Procurou a carta do pároco para colocar no topo dos papéis, para não se esquecer. E a proposta de lei que escrevera, de pontas já amareladas, por cima.
Deixou o corpo tombar na cadeira. As mãos ainda tremiam.
Olhava para a carta com orgulho, mesmo com os erros de tipografia que conseguia ver.
A sala do ministério já estava vazia antes da hora da ceia. Era no silêncio — longe das conversas tolas que cultivavam entre as secretárias — que fazia o seu melhor trabalho, quase na penumbra.
Pela corrente de janelas, conseguia ver Lisboa a esmorecer.
Depois do sol se pôr, ele acendia as duas velas que ainda guardava na gaveta e continuava a trabalhar. Quando não vinha luz lá de fora, o luar fazia brilhar as letras desenhadas das máquinas de escrever e os seus braços de metal. Por momentos, parecia que tinham vida própria. Quando todos se iam embora, aquele lugar era digno de H.P. Lovecraft e dos contos loucos que publicara.
Quando os primeiros passos estalaram a madeira velha, uma corrente de gelo desceu-lhe pelas costas e o lápis saltou-lhe da mão.
— O senhor…
Levantou os olhos. Um homem mais velho chegava-se à sua secretária. Levantou-se e seguiu-o.
Em vez da onda gelada de lareira apagada, sucedeu-se uma onda vulcânica de raios de calor no seu corpo.
Conhecia o casaco e o dente na lapela, onde ficava o crachá da PVDE quando saiam do escritório. Nenhum crachá daquela vez. A lapela do casaco estava vazia. Vazia. Em nenhum dos episódios que investigara aquilo acabava bem. Era novo demais para acabar em Caxias, quando nem tinha feito nada de errado.
Uma vez bateu na preta que limpava a casa da mãe, mas duvidava que a PVDE soubesse.
Os pés inchavam dentro dos sapatos, as correntes de nervos eletrocutavam-no. Os corredores do edifício que não conhecia não eram bem iluminados. Cheirava-lhe a tinta ainda húmida.
O agente deixou que ele passasse primeiro na porta do corredor.
Dentro da sala, estavam dois outros agentes à sua espera, sentados de um lado da mesa. Uma única cadeira esperava-o. Havia canas partidas no canto da sala. Algemas rudes em cima da mesa.
— Se me querem fazer perguntas sobre a pesquisa para o projeto de lei, queria começar por dizer que a pasta da moralidade foi-me entregue pelo Presidente do Conselho, em mãos. Não é um… homem que se costume enganar, senhores. Como vocês … sabem.
Ninguém disse nada. Apontaram para a cadeira e Moisés sentou-se.
Estenderam-lhe a cédula de uma criança, antes que pudesse falar. Encolheu os ombros. Não era casado. Não era casado, como a mãe gostava de lhe relembrar quando lhe aquecia uma botija de água quente para colocar entre os pés.
Aproximaram a cédula do rapaz para mais perto.
Ele levantou o olhar para os inspetores à sua frente, mas não lhe disseram nada.
O Afonso tinha um mês. Era saudável. Moisés perguntou-se se seria algum dos filhos da vizinhança. Nenhum dos pirralhos era assim tão novo e, aliás, que diabo tinha ele que ver com os filhos dos vizinhos?
O agente mais gordo apontou para a linha onde assinava o pai.
Era o seu nome.
Ele pestanejou e leu a folha novamente. Era o seu nome. O seu nome.
Moisés encostou-se na cadeira podre onde interrogavam os infiéis, e depois voltou a dobrar-se para a frente, para ver o nome novamente. O seu peito era mastigado por chamas de raiva que desembocavam na garganta.
Era o seu nome.
Mas a caligrafia de Moisés era cuidada e inteligente. Os gatafunhos ali presentes eram obra de uma carpideira de mãos entortadas pela água fria. Iguais aos da rapariga que assinou no lugar da mãe.
— Nasceu no Santo António faz um mês. — O inspetor à sua frente clareou a voz. — Sabe que estas coisas… Se tens possibilidades, não o podes abandonar.
Artigo 348, que ele tanto referia na legislação que escrevia.
Moisés fechou os olhos e a cabeça tombou para a frente.
— Corromper as mulheres… abandonar a crianças… é um crime sério. A multa pode levar a tua casa.
O livro está à venda aqui.