Formigas, não aquelas de assas, mas aquelas miúdas, pequeninas, que nós esmagamos com os pés
#2 do Ray Bradbury challenge
— Que se levante o réu! — A voz da juíza estava gasta.
E o homem levantou-se, também cansado. Revirou os olhos.
Todos ali estavam cansados. Os meses de julgamento pesavam-lhe sob os ombros arcados. Até os repórteres da televisão e jornais de pouca reputação já tinham ido embora, restando apenas, no fundo da sala, um estagiário anémico com um caderno de notas marrom e uma caneta gasta, que ele clicava incessantemente quando estava aborrecido. Era o único ainda impressionado pelas fotografias das vítimas expostas na sala. Por mais que fosse chocante, o que mais chamava a atenção era a linha preta com que cosera a carne de várias mulheres – dos vários membros cortados. Ou melhor, cosidos.
— Tudo isto foi um erro. Eu não fiz nada de mal. — Disse o réu.
— Esquartejou quatro mulheres. — Corrigiu a juíza.
— A culpa é dela.
— Dela? De qual? Da sua esposa?
Não era bem «esposa» se estava morta. Seria independente agora, «solteira». O casamento dura até que a morte nos separe. A morte separou-os.
— Sim, da minha antiga esposa. Ela falava muito durante o jogo de futebol. E uma pessoa tem limites. Eu batia-lhe, e mesmo assim a puta não se calava.
— E matou-a?
— Eu não a matei! — Levantou a voz, acordando a sala. — Tudo isto foi um erro. Quando as unisse, a minha esposa acordaria. É o que acontece em Metamorfoses, de Ovídio. O que eu queria fazer era que a minha mulher acordasse rouca, muda, para fazer a comida e arrumar a mesa, mas não me chatear.
— E por isso matou mais três mulheres?
— Sim, mas errei. Pronto, admito que errei. No livro funciona, mas aqui, não. A última, dona das belas pernas … que podem apreciar, cheirava-me um bocado a puta. É por isso é que isto não resultou! No livro, ele só resgata mulheres honestas, mas eu não conheço muitas. As mulheres são todas mesquinhas. Pequeninas. São como formigas.
A juíza rodou os olhos.
— Mas …
— Mas foi a minha mulher que me mandou fazer isto. Era ela que estava mal com a vida que tinha.
A juíza levantou as mãos, como se se defendesse de um atacante.
— Então, as mulheres são formigas?
O condenado abanou a cabeça.
— Formigas, não aquelas de assas, mas aquelas miúdas, pequeninas, que nós esmagamos com os pés.
— Mas a sua mulher convenceu-o a fazer isto? É uma formiga, mas tem força para dar a volta a um homem forte como o senhor?
— Pois claro, é obra do diabo. — O réu respondeu.
A juíza deu com o martelo na mesa, para o calar.
Foi preso. E na prisão, o homem foi esquartejado. Depois de cremado, a urna caiu no chão. As cinzas borraram o chão e esvoaçaram pelo corredor. Quem entrava no crematório naquele momento, aquilo pareciam formigas, não aquelas de assas, aquelas miúdas, pequeninas, que nós esmagamos com os pés.
FIM
Olhem para mim a cumprir o que prometo fazer… what?
Desculpa os erros de formato.