Uma história inspirada em Fredie Oversteegen.
Para aqueles que penetraram a minha vida para dizer:
tens de aprender a divertir-te.
6 de abril de 1943, Países Baixos
“Queres um copo?”
Ela saltou, à espera de ver uma farda castanha – favor de Hugo Boss – e uma suástica vermelha. Mas era só um adolescente, dois ou três anos mais velho, alto, a sair da penumbra e colar-se a ela, debaixo de um candeeiro de Haarlem, terra que os nazis destruíram. A farda da juventude Hitleriana ficava-lhe ridícula.
Respirou fundo. Esforçou-se para sorrir.
“Como te chamas?” Ele perguntou.
“Margot.”
Deu-lhe o nome da irmã morta porque achava ser uma forma de honrar as pessoas. A mãe dizia que aqueles que eram falados nunca morriam. Então que fosse.
O perfume dele era intoxicante. Naquela economia só os nazis podiam comprar tanto perfume – e o gastar numa saída à noite numa quinta-feira, para encharcar pela farda ridícula da juventude Hitleriana.
O loiro inclinava-se na direção dela. Quem olhava nos olhos dele, via que não tinha alma. Abanou a cabeça para arrumar as madeixas da frente dos olhos, e olhou por o decote dela abaixo.
Freddie roçou os dentes de raiva, e mostrou-lhe um sorriso ainda maior. O seu primeiro instinto era fugir, embora rodeada pelo miúdos nazis, não parecia uma opção viável.
E se ele soubesse das suas atividades extracurriculares?
Ele não sabia das suas atividades extracurriculares, ou não estaria assim tão calmo. E de qualquer das formas, isso eram maus hábitos do passado que ela deixara morrer com a sua irmã. Iam morrer com a sua irmã.
A ansiedade cobria-lhe o peito. Estava farta de se esconder.
E logo o imbecil sorriu-lhe ainda mais. Aqueles sorrisos que só dás quando estás já bêbedo.
Talvez não os enterrasse já.
“Vamos” Freddie disse.
Entraram no bar mais barulhento da Holanda e sentaram-se ao balcão.
Enquanto ele falava – aquele sotaque mal-amanhado que os alemães tanto gostavam de mostrar – ela lembrava-se de Margot.
Não ajudava que sempre que quisesse atenção, o nazi lhe pegasse na mão e lhe chamasse Margô. Idiota. Nem falar sabia.
Se queriam conquistar o mundo, e dominar os povos inferiores – e naquele caso específico, deveras importante, despir as calças de Freddie –, pelo menos que tivessem um curso intensivo da língua que iam destruir. Saberiam distinguir o passado do presente do futuro. Coisas básicas que de certeza a colocavam com mais vontade de fingir um orgasmo.
“És daqui?”
“Vou embora amanhã.” Ela dizia ao abanar a cabeça.
O nazi fez cara triste. Nem para teatro servia.
“A minha mãe e a minha irmã… faleceram. Vou viver com o meu pai. Estavam separados. Amesterdão, acho.”
Amesterdão. Que buraco. Amesterdão. Seria aquele nome que Margot ia dar ao nazi no seu caderno. Um buraco para…um buraco.
O caderno! Ainda não o tinha colocado na mala!
Se pestanejasse, conseguia ver a mala dela em cima da cama – uma coisa castanha velha – a única que restava lá em casa. Estava no canto da cama, já fechada. O passaporte e a estrela já ao seu lado, e o guarda-chuva aos pés da cama. A casa escura, com o luar a entrar pela janela partida que as irmãs tinham no quarto. A noite de Haarlem brilhava por aquela janela. De certeza que os vizinhos ainda estavam a discutir… Elas também discutiam toda a noite, antes da guerra. Maior parte das vezes a discussão era sobre qual era a maior mente da literatura. A irmã puxava para os autores do começo do século. Freddie queria vomitar. E a mãe lá se metia na discussão – para as mandar calar as duas. Normalmente trazia poesia para o quarto delas, e atirava um par de livros para cima da cama. Rilke. O único bom exemplo.
Sim, Freddie gostava de Rilke, mas nada como o expressionismo do outro século – ou as luzes do século anterior. Desde a viragem do cento nada de bom tinha acontecido. Mas essa era uma frase da mãe, facilmente refutada – então só a utilizava quando já estava cansada e queria acabar com a discussão.
Mordeu o lábio, de olhar lívido na borda das calças do nazi.
“Queres ir dar uma volta? Festejar a última noite aqui?”
Olhou-o nos olhos.
Podia deixá-lo em paz. Olhou-o de cima a baixo. Era um rapazito da juventude, com baixas aspirações a um cargo militar administrativo, pais ricos que financiavam aquelas saídas supérfluas porque não tinha habilidade nenhuma para conversar com raparigas.
A verdade é que Freddie já caçou maior.
Ia embora amanhã. Olhou o seu tronco. As veias fortes subiam e desciam o seu pescoço claro. O nazi pegou-lhe na mão livre, que repousava no colo dela, e entrelaçou os dedos. As unhas dela estavam uma vergonha – roídas – e ele notou. A mão era fria.
“Queres ir dar uma volta?”
Mas o que é que aquele traste ia fazer da sua vida? Nada melhor do que fez até aquele ponto… Só mais um nome no caderno da irmã não fazia mal. Só mais um.
Mordeu o lábio. Não se orgulhava da sua situação.
A sua irmã tinha feito asneira. Asneira da grossa. A estupidez dela – das duas – e a tenra idade das miúdas, não as levaram a lugares, ou atitudes, prudentes.
Mas Freddie imaginara que tudo já tinha passado – e os dias de decisões prudentes estavam perto.
No funeral da irmã despido de flores, a mãe pediu que Freddie fosse forte e não chorasse. Mas quando Freddie enterrou a mãe, levou um ramo escondido dentro do casaco e atirou-o para o caixão antes de ser tapado com terra. Agora que tentava recordar-se da mãe, via aquela cena – as flores a misturar-se com a terra. O cheiro a queimado que lhes chegava e pregava as suas roupas. O céu preto.
Quando ficou sozinha, pensou que aquilo nunca mais ia acontecer. Que Freddie ia esconder para sempre o que tinham feito as duas. Mas aqueles olhos azuis relembravam a adolescente que havia outras formas de honrar o nome da irmã.
Respirou fundo. Era melhor pensar sobre aquele assunto… Rodou os olhos. Sabia que não ia mudar de opinião.
Amesterdão seria o próximo nome no caderno da irmã.
Saíram do bar depois do nazi pagar as bebidas.
O ar gelado fazia com que fechasse o casaco. Lá fora, a rua principal estava penetrada num silêncio sepulcral. As pessoas dos prédios ao redor, espreitavam por uma pequena frincha de luz, sem mostrar a cara toda. Acima deles, o céu era preto – inundado pelos restos da guerra, pó das cidades destruídas que se alastrava.
Antes da guerra, segundo o que a mãe dizia enquanto lhes entrançava o cabelo para o banho, havia outro mundo depois do sol se pôr. Como se as pessoas tivessem força para viver a noite como faziam de dia, com a ajuda da luz artificial. Naquela noite não havia luzes artificiais. Apenas a penumbra. E a luz quente das bombas a rebentar ao longe.
Seguiram para o outro lado da estrada, onde o nazi tinha o automóvel, e conduziram pela noite.
Pararam numa estrada de terra batida. Freddie tentou decorar o caminho, conhecia pouco da cidade, mas perdeu-se.
Quando desligou o automóvel, o motor deu um salto alto que a assustou. O nazi passou-lhe a mão pela pele de galinha do braço. O toque dele era rude.
“Queres sair ou ficamos aqui?”
E lembrou-se porque fazia aquilo. Mesmo assim, que cretino.
De onde é que aquele idiota tirava aquelas ideias?
Porque pensava ele que Freddie tinha vontade de fazer o que quer que fosse? A única coisa que tornava aquilo melhor era a ideia de sair de um lugar onde estava trancada para o meio do mato, onde podia fugir.
Freddie não se tinha recordado, até sair do carro e bater a porta. Não tinha nada com que o esfaquear. Tinha saído de casa com ideias de descanso, de se despedir da terra natal. Deixou a sua faca em casa, na mala já feita, pronta para deixar aquela vida para trás.
Ouvia os passos dele altos, como se calcasse vidro.
Todos os pelos da nuca se erriçaram. O coração batia-lhe violento, como se fosse explodir. A adrenalina fazia o corpo pulsar. A cabeça gritava para que fugisse, enquanto isso, ela congelara encostada à porta do carro.
O nazi juntou-se a ela, rente à porta. Arrumou o cabelo dele da frente dos olhos daquela maneira deficiente como dantes. Freddie cerrou os dentes. Apetecia-lhe arrancar-lhe o cabelo à bofetada.
Olhou-o de alto a baixo. O uniforme vinha com uma faca. Mas ele não a tinha consigo. A frustração fazia com que quisesse gritar. O que ia fazer agora? O pânico começava a respingar por ela fora.
E agora? Com um rapaz, sozinha?
“Margot…” Rebolava as mãos pelas coxas acima.
“Não me toques.”
Ele não disse nada.
“Eu disse Não me toques.”
“Tens que aprender a divertir-te.” Ele disse num sussurro.
Ela deu uma gargalhada alta.
Apertou-lhe o pescoço.
Rodou os corpos deles, para ser o nazi encostado à porta do carro. Bateu com a cabeça do nazi contra o vidro. Bateu e bateu e bateu até os antebraços lhe doerem, e voarem fragmentos de vidros para o meio dos assentos de pele preta.
Os olhos dele envidaram, parados. Os seus pés deixaram de esgravatar, para fugir. O pescoço dele ficou pendurado na janela fraturada. O resto do corpo parado.
Deu dois passos para trás.
Freddie pensou em cavar-lhe uma sepultura. À cristã.
Rodou os olhos, e ouviu galhos a partir cada vez mais perto dela. Era mais prudente puxar o corpo dele para a beira da estrada, à lá Hitler. E fugir. Fazer o resto da mala, sair dali.
Puxou-o para a beira da estrada, tirou as chaves do bolso dele.
Limpou os cacos de vidro no lugar do condutor, ligou os faróis.
Este está muito muito bom. Final inesperado.