Quando a morte veio, Claire não resistiu.
Deixou o corpo ir, sem medo. Conhecendo as escrituras, a morte não era um adeus, mas uma passagem para a verdadeira vida. E ela era tão fiel às escrituras como ao hábito que usava. Não tinha medo.
Primeiro, o escuro. Mal conseguia abrir os olhos. Depois, o corpo ficou ressequido e nauseado. Os seus membros pareciam leves. Inebriado, o corpo não desistia da consciência dorida de existir.
Era o mesmo sentimento de quando bebia demais. Aquela ideia deu-lhe um sorriso. Agora, na morada do senhor, seria diferente.
Pensou nas irmãs sepultadas atrás dos claustros no convento do Corpo de Cristo, na beira do rio Douro. Ia vê-las novamente? Quase se riu com aquela ideia. Mesmo com o corpo febril e dormente da passagem, ela sabia que não se encontrariam. Entre o céu e o fogo do inferno, não havia misturas.
Quando conseguiu abrir os olhos, o mundo parecia-lhe igual ao que tinha deixado. Mexia os dedos, para o corpo acordar. O sangue pastoso começava a circular novamente. O corpo aquecia devagar.
Pisava uma vasta pasta verde desordenada: parecia o jardim atrás do convento, uma ali não havia igreja. Ainda bem, pensou, odiava aquela vida. A nova vida, no céu, seria bem melhor.
Estava descalça, mas os tornozelos já não estalam de caibras. Olhou para as pessoas à sua volta, que deambulavam no jardim do céu; todos tinham sapatos, porque é que ela não tinha sapatos? Também queria sapatos! E depois olhou-os com cuidado. Não queria aqueles sapatos ridículos que usavam. Queria sapatos novos, para mostrá-los a Deus. Iam aceitá-la sem sapatos?
Seguiu-os.
O fim do mundo era composto por um pequeno muro de pedra puída que separava o jardim que calcava, do resto do mundo que via dali.
Reconhecia o nascer do dia, o céu raiado de cor-de-rosa. A cidade acordava gelada e infeliz. As carroças já andavam de um lado para o outro, a despejar as pessoas. O burburinho da cidade chamava a sua atenção. Preparam a primeira refeição do dia. A chuva das cidades era toda igual. Era fria, e sempre indiferente à sua inconveniência. Recordava-se muito bem. Tal como o álcool barato da taberna, aquela chuva impiedosa deixava-a com uma tosse cavernosa difícil de esconder. E era ainda mais difícil convencer a experiente prioresa que estava encharcada porque chovia nas celas do convento, onde devia de ter estado toda a noite.
Afastou-se do muro, e da vista do mundo e caminhou atrás do pequeno grupo de pobres calçados.
Primeiro, via pessoas aglomeradas umas jardas dali, e depois, percebeu que assistiam à margem de um rio de amigável corrente, e a duas pequenas barcas ali paradas. As barcas eram construções medievais, de madeira gasta e tinta lascada; três ou quatro tábuas faziam de assentos.
Estariam a pedir passagem? Era ali que seriam transportados para o céu? E se não houvesse espaço para todos? O barco podia afundar-se.
Seria aquilo o purgatório?
Embora o jardim fervilhasse de pessoas, Claire cada vez mais perto, percebia que faziam filas. Duas filas paralelas, principiadas por duas mesas quadradas, podres. Ela juntou-se à fila mais pequena.
Poucos entravam na barca à frente; muitos voltavam para o fundo da fila ao lado, paralela à sua. O que se passava?
— O próximo… — Chamou o miúdo.
O rapaz levantou os olhos enquanto ela se aproximava. Rodou-os imediatamente. Já tinha decidido que não merecia um lugar ali. Mas o que é que o pirralho sabia? Claire sorriu-lhe com a maior graça que conseguia.
Um anjo estava de pé atrás do miúdo. Não era uma criatura prazerosa de se olhar. Tinha uma batina comprida, mas não lhe tapava os pés. Estavam sujos. Os dedos tortos, amarfanhados, como se tivesse usado sapatos apertados toda a sua vida. Como se os encascalhasse por vontade. Tentou parar de olhar, mas não conseguia.
— A menina pertence à outra fila. — O miúdo disse-lhe sem a olhar nos olhos.
Mas a barca atrás deles tinha dois passageiros só! Uma mãe e um pequeno. Conhecia as marcas na sua pele, morreram de febre. Era para os doentes que o céu era reservado? Para que que o céu precisava de doentes? Os doentes já tinham ajuda da igreja, e ainda iam para o céu? O que fizeram eles para merecer aquilo?
— Pertenço a esta barca. — Ela disse de punho cerrado e os dentes a ranger. — Sou religiosa, ou não conhece o traje?
— Conhece o traje. — Disse o anjo atrás do miúdo a apontar alguma coisa no papel. O chão tremia-lhe debaixo dos pés descalços. Claire deu um passo atrás. O miúdo olhava-a de viés.
— O senhor é um anjo, e vai levar-nos para o céu. O que tenho de fazer? Onde é o purgatório, para que possa rezar?
O miúdo riu-se. Aquele riso acriançado… Um miúdo, preto, ria-se dela. O anjo ficou calado. Mantinha um olhar severo.
— Eu vou para o céu. Devotei a minha vida a Deus. Ele quer-me ao seu lado.
— Devotou a vida ao que é travesso e fácil. Morreu enquanto se dava aos prazeres do corpo, com o filho do vicário. Antes de morrer, o último nome que pronunciou foi o nome de um fora da lei, em vez do nome do Senhor, por isso, o seu corpo pertence a Satanás, se ele assim o entender.
Ela ficou incrédula. O corpo tremia um pouco.
— Mas ninguém viu. — Ela sussurrou. — E toda a gente o faz.
— Sim, — O anjo bufou. — Eu não julgo, não é esse o meu desporto. A outra barca ainda tem espaço para um assento confortável. Não tens de ir de pé… deixa muitas religiosas enjoadas.
O rapaz carimbou o papel e passou-lho. O peito pesava-lhe cada vez mais.
Ela saiu da frente deles e deu dois passos para a outra barca.
— Claire, cara parente! Seja bem-vinda. Pede ao padre na fila do fundo que não ocupe os dois lugares, tenho aquele guardado a pensar em ti! — Disse o diabo.