Agosto de 1958
No pequenino Portugal de Salazar, as mulheres estavam destinadas a morrer ou de tédio ou de pancada. Mafalda subscrevia às duas embora, até agora, tenha falhado redondamente.
Depois do almoço, o calor húmido de agosto fazia os vizinhos fumar lá fora. Na vida da aldeia reinava uma tranquilidade irreal. Traziam as normais conversas de bons costumes e família que interessavam todo o bairro e que a faziam esconder dentro de casa. Mafalda abria a janela das traseiras e fumava lá dentro.
As tardes de agosto relembravam-nade que nunca dali ia sair. Mafalda trilhava a língua quando pensava em morrer naquele bairro, entre aquelas pessoas, numa aldeia remota a uma hora de Lisboa, onde as mulheres conversavam sobre criar crianças, enquanto percorriam o caminho de terra batida, perdido no meio de ervas daninhas, para colocar a roupa a corar.
A vida teria mais a oferecer do que a leviana preocupação se haveria migalhas no chão da cozinha para limpar, ou se o marido estava contente com a refeição que cozinhara… ela era diferente daquelas pessoas. Nos seus piores dias, daqueles ensopados pela ansiedade, perguntava-se se não era culpa sua… recordava-se da voz da mãe a dizer-lhe que tinha muitas ideias na cabeça. E uma mulher com ideias na cabeça era tão útil ao marido como um cavalo coxo. De pronto, explicava-lhe o que se fazia a um cavalo coxo.
Mas do cemitério já não dizia mais nada.
Apagou o cigarro e sentou-se à secretária. A cadeira estalava quando se sentava. Colocou uma folha na máquina de escrever. O clique estridente da máquina ao chegar ao início da folha era a única coisa que a fazia sorrir.
Fechou a janela para a brisa não derrubar a folha para a frente, e conseguir ver o que datilografava.
Escrevia. Escrevia o dia inteiro, como se tivesse febre e a máquina de escrever a máquina de escrever fosse a cura. Não era, mas, enquanto a escrita a afastasse do mundo e a permitisse escapar à rotina, Mafalda continuaria a fingir que sim.
Já publicara dois livros sobre o regime e a liberdade sem o seu nome na capa. A capa não estava vazia. Punha as iniciais do marido em caso de alguma suspeita, mas ele também não sabia. Tal como a sua falecida mãe, Salazar não gostava do que tinha para dizer, mas nunca tinham interesse em fazer uma visita.
Bateram-lhe à porta. Duas batedelas de pulso firme. Uma onda de medo escorreu-lhe pelas costas. Mafalda apressou-se à porta, de boca seca, mas a gravilha de frente de casa já cantava com o carro a voltar à estrada e sabia que não os apanharia. Quando abriu a porta, o carro já ia longe.